domingo, setembro 25, 2005

11 de Setembro de 1891 - O último passeio de Antero

O mês de Setembro de 1891 foi daqueles meses húmidos e quentes, da típica e deprimente mornaça que os micaelenses consideram de mau agoiro. Prenúncio de maus humores e de sismos.
Antero de Quental chegou aqui, vindo de Vila do Conde, a 8 de Junho de 1891, no navio Açor com o intuito de fixar definitivamente residência em S.Miguel e proporcionar às suas pupilas Beatriz e Albertina Meireles uma vida familiar e social apropriada, que “as ajudasse a enfrentar a vida e serem boas donas de casa”.

Navio Açor

Veio só e não se hospedou de imediato em casa de José Bensaúde por ausência deste no estrangeiro, indo hospedar-se no Hotel Brown. Só a 25 de Agosto com a chegada do amigo no paquete Funchal, se mudou para a casa de José Bensaúde.

José Bensaúde

“(…) Espero que não levará a mal se me não aproveitar imediatamente da hospitalidade que me oferece. Não estando ali o dono da casa parece-me que seria um tanto insólito ir eu para lá. (…)”

Solar de Nossa Senhora do Parto, onde funcionou o Hotel Brown


Antero chegou a alugar e mobilar uma casa em S.Gonçalo onde pretendia ir viver com as pupilas, de frente para o Mercado do Gado, mas a deterioração do seu estado de saúde acabaria por não permitir a mudança. O receio dos ruídos das cornetas dos militares e dos vagidos das vacas contribuíram ainda mais para a indecisão e atraso da mudança.

Casa de S.Gonçalo

Aqui chegado começou Antero em consultas com o Dr. Bruno Tavares Carreiro mostrando desde logo a sua dúvida quanto a justeza da sua decisão de para cá vir viver. Numa das consultas pediu-lhe: “ O Doutor quer ser meu amigo? Muito meu amigo? É dar-me uma dessas injecções que se dão com uma seringa por debaixo da pele e que matam instantaneamente sem se sentir…”

Dr. Bruno Tavares Carreiro

A sua instabilidade emocional manifestou-a aos seus primos Sebastião Arruda da Costa Botelho e Augusto Arruda Quental e a José Bensaúde, chegando a afirmar: “Isto ainda acaba com uma corda na garganta ou com uma bala na cabeça”. Nas suas visitas ao primo Sebastião discutiu o suicídio com ele ficando depois preocupado por ter o próprio primo tentado o suicídio tempos antes e sentir-se responsável por qualquer influência funesta que esta conversa pudesse ter. Numa das visitas à filha do primo Sebastião, Maria Helena da Costa Botelho então uma criança e que se encontrava doente, teve um inexplicável ataque de choro convulsivo. “Deixem… Deixem… Não é nada!

Casa de Sebastião Arruda da Costa Botelho, onde Antero escreveu a sua famosa Carta Autobiográfica em 14 de Maio de 1887

Aos irmãos Faria e Maia não manifestou intentos suicidários. Foi visita diária de João Machado Faria e Maia, retido em casa com uma fractura de uma perna e dois dias antes do suicídio em conversa com Francisco Machado Faria e Maia só lhe manifestou a sua preocupação “em ficar inválido e pesado aos outros”.
As pupilas chegaram a S.Miguel a 24 de Julho no navio Funchal, acompanhadas pela irmã de Antero, Ana do Quental de viuvez recente, com quem Antero tinha uma relação difícil dado que a referida senhora embirrava com uma das pupilas de Antero e não concordava com o compromisso que o irmão assumira. Foram hóspedes do Dr. Carlos Maria Gomes Machado então Governador Civil de Ponta Delgada. Tornou-se Antero visita diária do Governo Civil deixando a impressão à filha do Dr. Carlos Machado, Sr. D. Maria Conceição Machado de que “não tinha projecto algum e que na sua cabeça tudo se confundia num turbilhão”. Por diversas vezes tentou a amável senhora distraí-lo. Antero dizia-lhe amargurado: “Bem a compreendo, mas tudo é inútil. Sou um vencido da vida. Já nada pode distrair-me”.


Ao fundo o antigo edifício do Convento da Conceição onde estava instalado o Governo Civil

A 10 de Setembro Antero foi entregar as pupilas às Senhoras Juníperos, na Rua Direita de Santa Catarina, uma vez tencionava deixá-las entregues a estas senhoras porque estava decidido a regressar a Lisboa dado o seu precaríssimo estado de saúde e “recomendou que desejava muito que elas se habilitassem para serem boas donas de casa, recebendo uma educação de imediata utilidade no lar doméstico”. A entrega foi dramática, com as crianças a pedir para ele não as abandonar e Antero chorando convulsivamente abraçado a elas, prometendo levá-las para Lisboa. Poderá ter sido “a gota de água”…
Dali foi ao Governo Civil onde sob forte emoção conversou com a sua amiga Sr.ª D. Maria Helena Freitas Machado que o tentou animar. “Está enganada minha senhora, a felicidade não se fez para mim”.

11 de Setembro de 1891
A noite de 10 para 11 de Setembro foi de insónia. Pela onze da manhã Antero e José Bensaúde almoçaram e conversaram durante mais duma hora. A decisão do suicídio ainda não estava tomada. A criada veio perguntar o que pretendiam para o almoço do dia seguinte. Com naturalidade Antero considerou ser “mais prudente uma coisa leve”.
Era 1 hora da tarde quando José Bensaúde saiu. Excepcionalmente vestido de preto Antero saiu pelas 2 horas e trinta minutos. Dirigiu-se ao Governo Civil para entregar à irmã umas dúzias de libras de ouro “porque o preocupava tê-las”.
Por três vezes tentou encontrar o Coronel Francisco Afonso de Chaves na sua casa. O Coronel Chaves era um optimista, bem disposto e folgazão. A antítese de Antero. Tê-lo-ia procurado para tentar arranjar algum ânimo que contrariasse a atitude “que repugnava a certos seus sentimentos morais”, como anos antes afirmara a Germano Meireles?

Casa do Coronel Chaves


Coronel Francisco Afonso de Caves

Dirigiu-se pela 6 horas da tarde à Loja de quinquilharias de Benjamin Férin na esquina da Rua dos Mercadores. “Ao entrar, perguntou se tinham revólveres; sendo-lhe respondido que sim, olhou para a montra onde estava um Lefaucheux, e disse que era possível que aquele mesmo lhe servisse. O caixeiro apressou-se a mostra-lho e entregou-lho, para que o examinasse. Antero pegou no revolver, mas em vez de puxar o gatilho, levantava o cão e depois largava-o, imaginando que cairia por si. O caixeiro explicou-lhe que, para que o cão batesse no fulminante, era necessário levantá-lo e depois puxar o gatilho. Respondeu que nada percebia daquilo, porque nunca fizera uso de armas de fogo. Morava no campo e por isso queria ter um revólver para afugentar algum malfeitor. Dizendo-lhe o caixeiro que ouvira falar da sua próxima partida para Lisboa, respondeu que na verdade resolvera regressar ao Continente, mas que, tendo passado melhor durante os últimos quinze dias, ainda se demoraria algum tempo na ilha. O caixeiro, depois de examinar o revólver, vendo que era tardio, foi buscar outro melhor. Antero pediu-lhe que o carregasse e explicou que não comprava mais balas porque não ia pôr-se a dar tiros; bastavam as da carga. Como pedisse ao caixeiro que embrulhasse bem o revólver, foi envolvido em três folhas de papel amarradas com uma guita. O revólver e as cargas custaram 6$150, que pagou com três libras, recebendo o troco. Em toda a conversa sempre esteve calmo e tranquilo”.

Loja de Benjamin Férin

Depois de sair, subiu a Rua Nova da Matriz, actual Rua António José de Almeida e foi visitar o seu primo e amigo Augusto Arruda Quental que morava na casa, ainda existente, fronteira à Rua Nova da Matriz, na então Rua de S. Braz, hoje Rua Machado dos Santos e que faz esquina com a Rua do Colégio, actual Rua Carvalho Araújo.

Casa de Augusto Arruda Quental


Augusto Arruda Quental

Antero parou na casa deste primo, pousou na mesa da entrada um estranho embrulho de papel de jornal e foi conversar com o primo sobre o destino e preocupação que tinha com as suas protegidas, Beatriz e Albertina Meireles, quando ele falecesse. Após alguns minutos de conversa Antero saiu e o primo, muito solícito, quis entregar-lhe o misterioso embrulho ao que o Antero gritou: “Não lhe pegues!”.
Saiu e seguiu pela Rua de S. Brás até ao Governo Civil onde estava a sua irmã Ana Guilhermina do Quental. Deixou no corredor o chapéu e sob ele o embrulho com o revólver. O Dr. Aristides da Mota diz que descansou serenamente, como costumava, na cama. Entregou à irmã o dinheiro que sobrara da compra do revólver. Inquirido se ficava sem dinheiro afirmou que “para nada o queria”. No bolso do colete foram encontrados posteriormente alguns papéis com bismuto e uma pequena caixa de lata. Entrou no quarto a Tia Maria Isabel de Quental, irmã do pai e por quem Antero nutria especial antipatia. Levantou-se cumprimentou-a com cortesia e sem se despedir saiu. Ainda se cruzou com o Coronel Chaves que acidentalmente tinha ido ao Governo Civil mas deve ter tido uma conversa fugaz dada a perturbação do seu espírito e saiu despedindo-se de D. Maria Helena Machado que o acompanhou, fazendo-lhe um reparo por esta tratá-lo por Doutor: “ Esqueceu-se, minha senhora, do compromisso que tomou comigo”. Estendeu-lhe a mão e disse “Minha senhora, desejo-lhe uma boa noite”.


Ana Guilhermina Quental


Dr. Carlos Machado

Era já noite e caía uma chuva miudinha. Passou pela Rua de Santa Catarina pela casa das Sr.ªs Juníperos sem entrar e terá descido pela Vila Nova até ao Campo de S. Francisco. Sentou-se no banco “onde um pouco acima da sua cabeça a palavra Esperança iria coroar, por ironia do destino, aquele trágico final de vida”.

Rodrigo Rodrigues

Um então jovem estudante liceal, Rodrigo Rodrigues, viu Antero sentado no banco e não ouviu os tiros o que mostra que ali esteve sentado algum tempo.

Banco do Campo de S. Francisco onde Antero se suicidou

Pela oito horas da noite Antero levou a pistola à boca e disparou. Terá inclinado demasiado a cabeça para trás de modo que o tiro saiu pelo nariz destruindo os ossos próprios do nariz junto aos olhos. Antero sente que a bala errou o alvo e lentamente leva novamente a arma à boca e dispara um segundo tiro que desta vez não erra. Um polícia que se encontrava a sessenta metros ouvindo o 1º tiro dirigiu-se devagar para lá levando trinta ou quarenta segundos a chegar até ao segundo tiro.
O Dr. Mont’Alverne de Sequeira e o Dr. J.J. Sousa acercaram-se do moribundo e encontraram-no “em decúbito dorsal, afásico, de expressão serena com os olhos fechados, mas consciente”. Parece que foram dois os tiros, exclamou o Dr. Mont’Alverne. Imediatamente Antero apontou com o indicador para a região posterior do palato. Perante a dúvida de se tinha sido o primeiro ou segundo tiro novamente o Poeta com os dedos indicador e médio direitos indicou que era o segundo!

Dr. Mont’Alverne de Sequeira

Transportado em maca para o Hospital ali próximo foi assistido pelo seu médico Dr. Bruno Tavares Carreiro e acompanhado pelo seu amigo José Bensaúde. A violência do seu sofrimento levou a que dois homens não conseguissem suster-lhe as contracções.
Morreu ao fim de uma hora com “um sorriso a iluminar-lhe o rosto descarnado de mártir”. Eram nove horas da noite.

Hospital da Santa Casa da Misericórdia

Foi sepultado no dia seguinte, pelas cinco horas da tarde no cemitério de S. Joaquim de Ponta Delgada, no local junto à entrada, onde, sob uma pirâmide de pedra de lioz jaziam os seus pais e o Avô André da Ponte.
Antes de descer o ataúde foram proferidos discursos pelo Dr. Aristides da Mota, Dr. Júlio Pereira da Costa e o jornalista Manuel Pereira de Lacerda.

Dr. Aristides da Mota


Dr. Júlio Pereira da Costa

Manuel Pereira de Lacerda.


Túmulo de Antero


Alguns anos depois foi gravado sob o seu nome e data de nascimento o epitáfio composto por João de Deus em 1894

Aqui jaz pó: eu não; eu sou quem fui
Raio animado dessa Luz celeste,
À qual a morte as almas restitui,
Restituindo à terra o pó que as veste
.

Texto de José Bruno Carreiro, in Antero de Quental, Subsídios para a sua Biografia
Ilustração por Carlos F. Afonso

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