sábado, dezembro 10, 2005

Ponta Delgada - Vandalismo Cultural ou Desenvolvimento LIV

Como se referiu, para a construção do Palácio de Fonte Bela foi demolido, na sua totalidade, o velho Paço dos Condes da Ribeira Grande.
Tudo o que resta do antigo Paço dos Condes da Ribeira Grande são três pedras, hoje no Museu Dr. Carlos Machado e que provavelmente ornavam o portão do Paço, virado para a Rua do Desterro, próximo da actual Ermida de Nossa Senhora do Desterro e que não foram para o lixo, seguramente por esquecimento, do ilustre e ilustrado barão. Foram encontradas numa arrecadação do Liceu e entregues ao Museu.


O que resta do sumptuoso Paço quinhentista dos Condes da Ribeira Grande em desenho do Dr. Luís Bernardo Leite de Ataíde

Diz a propósito do velho Paço o Dr. Luís Bernardo Leite Ataíde: Vejamos o que a seu respeito consta, o que se pode conjecturar sobre a sua proveniência e qual o papel que, em tempos longínquos, desempenharam.
Um dos mais notáveis capitães donatários desta ilha foi o filho único de D. Manuel da Câmara, D. Rui Gonçalves da Câmara, que a seu pai sucedeu na Capitania, quando do seu falecimento em 13 de Março de 1578. Às nossas construções civis, militares e religiosas dedicou D. Rui particular atenção, deixando realizadas importantes obras.
Segundo o cronista, fez ele ampliar os edifícios da Santa Casa, «e com grande juízo que em tudo tem, particularmente no edificar e construir, mandou emendar a capela da Sumptuosa igreja, submetendo o seu plano à apreciação de Pero Maeda, mestre-de-obras de el-rei, que o aprovou».
D. Rui, educado na corte, amigo íntimo do príncipe D. João, filho de D. João III, veio a S. Miguel, pela primeira vez, em 1566, depois, volta à sua donataria já casado, em 1576, ordenando então as referidas obras na igreja da Misericórdia e sete anos mais tarde desembarca em Vila Franca do Campo, vindo na armada espanhola, dedicando toda a sua atenção e actividade às fortificações da ilha.
Terminada a defesa dos pontos da costa mais favoráveis a desembarques, dá início à construção do seu palácio em Ponta Delgada. A importância da donataria, as exigências de ostentação imposta pelo título com que havia sido agraciado pelo rei Filipe, em 17 de Junho de 1583, transmissível aos seus descendentes e, finalmente, os hábitos de luxuosa vida que levava, determinaram a construção de uma vivenda condigna para sua residência, até então na freguesia de São Pedro.
Todas as referências do cronista a este capitão manifestam claramente, ou deixam vislumbrar, o brilho, o fausto e a grandeza em que se envolvia, de entre elas sobressaindo a feita aos preparativos para a jornada de África. Duas das oito mil cartas escritas por D. Sebastião no seu refúgio de Sagres, livre de incómodos conselheiros, convocando para Tânger os terços dos concelhos e as armas dos fidalgos, foram enderaçadas, uma, a D. Manuel da Câmara e outra, a seu filho que, procurando corresponder ao apelo do rei visionário, preparam logo, solícitos, a sua mesnada com tanta riqueza e com tanta majestade que muito sobressaíram entre o esplendor e a grandiosidade das exibições apresentadas em Lisboa pela nobreza orgulhosa de todo o reino, a fazer alarde do seu poder nessa fase preparatória da tenebrosa expedição. Vinte e sete cavaleiros vestidos de verde, com esporas e espadas prateadas, luvas de ouro, adagas e corseletes, destros no manejo das armas e garbosos no cavalgar, acompanhados de criados e, junto destes, doze homens resposteiros, três cozinheiros, músicos, charameleiros, vestidos também de verde, com chapéus de tafetá preto e adereçados com cadeias de prata ao pescoço, tendo por divisa o Anjo São Miguel, alusiva, por certo, a esta ilha, seguidos de numerosa pionagem, constituíam o contingente oferecido pelos nossos donatários ao rei aventureiro. Tendas, grandes vitualhas, mantimentos variadíssimos, casas de madeira e valiosas baixelas de prata, para serviço das mesas, pejavam caixas e baús servindo de fundo ao movimento e vistoso quadro, no qual sobressaía a figura atraente de D. Rui, por entre florejantes pendões, e espadas tremeluzentes, ao som do clangoroso alarido das charamelas e do retinido das armas em evolução, montado em possante ginete de batalha ajaezado de ouro, com aquele arreio que fora esculpido na Índia, para o corcel do vice-rei Martim Afonso de Sousa, coberto por amplo caparazão de escarlate e todo lentejoulado de taxas de prata, a centelhar em veludo carmezim. Sobre o colete de anta, resplandecia a magnífica armadura lavrada que o Infante D. Luís ofertara a seu pai e, assim, tomou o futuro capitão donatário de S. Miguel, parte nessa revista militar, vibrante festa de clamores bélicos, parada radiosa de cor e faíscante de armas a reluzir, cantando antecipados e álacres hinos de vitória, mas que já alimentava, oculto, o germe tremendo da perda da nacionalidade. D. Rui, exibindo loução na carreira, mal ocultava, por certo, o regozijo que lhe ia na alma, exteriorizado nos expressivos olhos verdes amplamente abertos no alvo rosto, povoado de bem posta barba. Não chegou, porém, a mesnada do donatário de S. Miguel a sair de Lisboa. Na véspera de partir seu filho para África, recebeu, D. Manuel da Câmara, carta de D. Sebastião, dizendo-lhe que esperasse por nova ordem que jamais chegou. A residência de tão faustoso capitão seria de apreciável arquitectura e uma vasta ostentação de grandeza, afirmando Frutuoso que, pelo que mostrava em seus princípios, viria a ser, depois de acabada, como uns riquíssimos e soberbos paços, situados quase no meio da cidade, dando-lhe o maior lustre.
Relacionada, sem dúvida, com a competência especial de D. Rui em assuntos de construção, uma das modalidades do seu espírito culto, «de extremado escrivão e aritmético» e a ela alusiva, será a parte do exórdio com o qual o cronista abre a sua biografia dizendo: «porém o que disser do Conde D. Rui Gonçalves da Câmara são coisas tão modernas e tão vivas e presentes a testemunhas que foram nelas, que não darão lugar a fábulas, somente meditarei, algum tanto, em abrir os alicerces de seus louvores e grandiosos começos, deixando o processo da traça e remate da, obra e sumptuosidade deles para outro mestre, porque o edifício que há-de vir a ser alto, na fábrica, há-de ter forçadamente, nos fundamentos, maior detença e de quem tem, como ele teve tão ditosos e altos princípios, não se espera senão que proceda e acabe, tendo por respondestes felicissímos remates» . (Saudades da Terra, liv. 4.º, caps. 95 e 96).
Desse paço quinhentista, delineado provavelmente pelo próprio Conde com a colaboração de Pero Maeda e que veio até aos começos do século XIX, época em que se demoliu para, em seu lugar, se construir a actual casa apalaçada, onde funciona o liceu de Antero de Quental, restam, apenas, as três referidas pedras nessa propriedade encontradas, orna­mentos talvez da entrada do sumptuoso paço, abrindo-se, outrora, a meio da rua do Desterro, segundo nos indicam os roteiros da procissão de Passos da Santa Casa de Ponta Delgada do século XVII. Pela sua antiguidade e estilo em que se apresentam lavradas, devem pertencer ao número daquelas que o capitão para cá mandou em 1579. Em fins de Setembro desse ano seguiu D. Rui para S. Miguel num galeão mas, logo depois, viu-se obrigado a arribar, por não poder sua mulher, D. Joana de Gusmão, suportar o enjoo por vir pejada; uma caravela do Porto que acompanhava o seu navio, trazendo trigo, cevada, vinte e cinco corpos de armas, dois cavalos, um grande e riquís­simo leito, mesas e cadeiras marchetadas de marfim e algumas pedras brancas lavradas, arribou também descarregando todos esses objectos, a não ser as pedras e o leito dourado que vieram para S.Miguel, mandando-as deitar D. Rui na Lagoa, destinada a uns portais. Provavelmente foram elas mais tarde aplicadas na entrada do seu paço em Ponta Delgada.
(Luís Bernardo Leite de Ataíde, Etnografia Arte e vida Antiga nos Açores Vol. I pág. 199)

Não se pode imaginar que quem vivia com esta opulência vivesse num pardieiro que não merecesse ser restaurado e recuperado no séc. XIX!

Carlos F. Afonso
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