António Dacosta, Pintor Europeu das Ilhas
Eu não queria comprometer o bem que penso da arte de António Dacosta com palavras sem peso; mas a verdade é que a minha visão dos seus quadros e desenhos ainda não se comunicou ao meu pensamento o bastante para que o que eu diga sobre ele valha a pena.
Se há imaturidade nisto, é minha. Não é por ser novo que se é verde. E António Dacosta, pintor jovem, trabalha já para lá das verduras da mocidade, com tintas próprias, sobre um desenho seu, para um resultado já visível.
Esta posse de meios é que se chama autenticidade em arte, creio eu. Creio mesmo que não chega a ser questão de arte qualquer coisa que não implique tal posse, sem tais unhas. Pois tudo o que se tem plasticamente é só com unhas que se tem.
O feio, e até o horrível, foram das primeiras inspirações deste artista. Não tanto o feio e o horrível no modelo, mas os do processo associativo das formas, a coragem de concepção pelo feio e horrível.
As formas não têm tratamento de favor na imaginação de Dacosta. São coisas larvares tiradas afoitadamente como larvas; ou então halos, objectos que ele faz conviver segundo as leis clássicas da sociabilidade dos valores em pintura: plasticidade, perspectiva.
O mundo figurado de Dacosta é implacável com quem se não queira submeter à espacialidade que ele lhe oferece, às condições de uma iluminação bárbara ou sábia, a variedade de sinais, aos contrastes simbólicos. Só depois de tratadas a fogo de sinceridade, as coisas da invenção pictural de Dacosta consentem alguma graça tecnicamente possível (e sempre com escândalo da boa-educação dos museus): como, por exemplo, a barbatana onde se esperava a asa; uma chave de ferro em puro cor-de-rosa; aquela rola que espreita da mastóide numa cabeça clássica, duns verdes plúmbeos, de tão forte composição.
A princípio, ainda me quis parecer (por um começo de rabugência da vizinhança dos quarenta anos) que António Dacosta procurava nos abecedários de alguns ismos mais ou menos passados em pintura, o seu pendão de guerra. Porque, enfim, entrar na liça é bonito, contanto que nos vejam...
Mas como podia António Dacosta - que é o que se chama um pintor - pretender outra coisa que não fosse ver («vi como um danado», escreve Fernando Pessoa), e ver pelos olhos que trouxe das ilhas, - lá de todo o repouso e paz crepuscular, 1á do silêncio açoriano que nos não ensina senão a ver com vaga e sem alarido o que é natural e dado para se ver?!
Assim, se o pintor trabalha no monstruoso, ou no anómalo, se vai pelo caminho menos lisonjeiro que plasticamente dar-se pode, vai para dar à sua graça de artista a mão de ferro de que ela precisa para se instalar um dia sem parentescos fáceis na Forma e na Cor.
A esta espécie de anjo-mau das exposições, desmancha-prazeres do vernissage, que é António Dacosta, deu Deus desde já a segurança que faz um retratista sólido, ali ao cavalete artista que só pede tempo de atelier, maturação técnica, para selar as semelhanças com o invariável sinal do seu engenho. Que dirão a isto os assustados com algum monstrengo azul celeste das composições de Dacosta?
E cor. Um sentido da cor pura, que já se não pode dizer rigorosamente obtida, mas jogada aos dados no quadro, – daquela cor que não depende do que já se sabe muito bem quando é para ser azul, verde ou açafrão. Isso que faz um quadro e um pintor, como a palavra ardente e rápida num verso faz o verso e o poeta.
Estilo, afinal, quer dizer só matéria.
Mas agora que as minhas palavras podiam começar a não ser volúveis de todo – como o quadro que começa a merecer a dignidade da moldura – calo-me eu. Gosto de deixar ao que espero todo o vagar da confiança.
Diante de António Dacosta, como artista que também não desespero de ser ilhéu de sempre, tenho cá uma fé… Para que acabem de vez os ilhéus malogrados e os que davam tantas esperanças…
Os Açores que merecem um pintor que exprima aquelas cores de cripta, aquela penumbra baixa que em tudo abre a intimidade de um reflexo, aquela nobre lei de perspectiva que se funda nos picos e nas águas.
Mas claro que o caso de António Dacosta não é para se pôr em termos de bairro, mesmo que esse bairro tenha limites de rocha e bico de gaivota, como a ilha Terceira.
António Dacosta – pintor europeu das ilhas. E, para mais, veremos…
Vitorino Nemésio
(publ. em In Variante, n.º 1, 1942)
Serenata Açoriana
1940, óleo sobre tela
81 x 65,7 cm
Centro de Arte Moderna
Fundação Calouste Gulbenkian
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