sexta-feira, junho 11, 2004

O bairro português de Malaca

Afonso de Albuquerque conquistou Malaca em 1511, talvez por uma série de equívocos e, na opinião de Giovani da Empoli que o acompanhou nesta expedição, “pela ambição de ganhar fama pela crueldade”, concordando com a opinião de Oliveira Martins que considerava o nosso império do Oriente como um “monumento de ignomínia”. Em nome duma altruísta dilatação da fé e da civilização, matou-se mutilou-se, escravizou-se e espezinharam-se civilizações superiores, com o mais egoísta e lucrativo objectivo da pimenta e da canela.
O encorajar os casamentos mistos dos portugueses com a população local, levou ao nascimento de uma comunidade cristã – que se identificou e ainda identifica como “Kristang” – e ao aparecimento de uma linguagem crioula conhecida por “Papia Kristang” que é basicamente uma mistura de português arcaico com gramática malaia. Ainda hoje persiste quer esta comunidade que se orgulha da sua cultura (na linguagem, religião, música, festas populares e rituais de casamento e de noivado) quer ainda os já muito poucos e degradados monumentos portugueses (ruínas da catedral de S.Paulo, A Famosa e a Porta de Santiago), apesar da curta permanência dos portugueses em Malaca (1511-1641) e a sua posterior ocupação por holandeses e ingleses com património arquitectónico mais recente e notório, ainda que no meu ponto de vista, mais pobre.
O núcleo desta comunidade é hoje o pobre (e feio!) Bairro Português (Portuguese Settlement), com cerca de 1000 luso descendentes. Sendo uma comunidade pobre e minoritária não tem qualquer influência económica nem politica e, embora fosse originariamente uma comunidade piscatória, é hoje uma mera atracção turística. Calcula-se que o número de luso descendentes em Malaca seja de 4.500 pessoas que se reúnem no Bairro Português em ocasiões festivas.
A ideia da construção do bairro, a cerca de 3 km do centro de Malaca, foi de dois missionários, um francês, o padre Pierre François e um português, o padre Álvaro Coroado, sendo inaugurado em 1930 com o apoio do Alto-comissário Inglês Reginald Crichton.
A surpresa da chegada começa desde logo pelo nome das ruas. A Rua D’Albuquerque, numa homenagem a Afonso de Albuquerque. A Rua de Sequeira, recordando o Almirante Diogo Lopes de Sequeira, o primeiro a navegar nos mares de Malaca e a enviar oficiais e uma carta do rei de Portugal ao sultão. A Rua de Teixeira, o oficial encarregado de entregar as prendas e a carta, que ao que consta presenteou o sultão com um colar, colocando-o no pescoço do “bendhara”, gesto considerado descortês, que assustou os presentes e talvez precursor de toda a série de equívocos que levaram à guerra. A Rua de Aranjo, em homenagem a Rui de Aranjo, feito prisioneiro em 1509 após a 1ª batalha com os malaios e que escreveu a Albuquerque pedindo-lhe a invasão de Malaca antes que a cidade fosse fortificada. A Rua de Erédia, Emanuel Godinho Erédia, escritor português que publicou uma História de Malaca em 1615.
O fim da tarde, na esplanada do “Restorant” Lisboa, situado no Medan Portuguis (Largo Português), com vista sobre o vasto Estreito de Malaca, ao som do “Bailinho da Madeira”, “Uma Casa Portuguesa” e “Coimbra”, tocadas e cantadas em “Papia Kristang”, num horrível órgão electrónico, por um simpático malaio, o Sr. George Alcantra, com um orgulho saudosista – algo insólito e romântico – foi uma experiência que não esquecerei, mais pela inesperado da situação do que pela beleza do local.
Pena é que, mesmo em locais de mais longa e pacífica permanência dos portugueses, nomeadamente Goa e Macau, não haja o mínimo esforço de preservar os vestígios dessa presença e pelo contrário seja manifesta a vontade política de os apagar, como se fosse possível, apagando-os, reescrever a própria História.



Ficam aqui mais estas memórias do meu Pai.
Nesta viagem não vos acompanhei até à Malásia, mas recordo que Macau mostrava menos a "nossa marca". É certo que tínhamos a pastelaria "Bolo de Arroz" onde podíamos matar saudades da bica e do pastel de nata, alguns marcos arquitectónicos e as recentes placas de nomes de ruas (colocadas, ao que parece, para criar a "marca" perto da data da "retirada" ou "entrega" do território). É certo que passei um dia sozinha em Macau e senti-me em casa, mas acho que isto se deveu mais à dimensão e pacatez do território do que à nossa marca. Faltavam a língua, as referências à nossa história e à nossa presença, e sobretudo faltavam portugueses.
Ainda recentemente, na minha estadia em Madrid, tive ao meu lado num jantar um malaio a quem tentei reproduzir esta memória da vossa viagem à Malásia.
Mas eu, a contar histórias, degenerei...

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