domingo, maio 09, 2004

Bom senso e bom gosto

Em apoio da “Carta Aberta, ou à berta” do Pedro no :ILHAS

O desrespeito pelo património arquitectónico urbano não é do PPD, do PS, da República ou da Monarquia, da direita ou da esquerda. Existe cá, como em Lisboa, Paris e talvez menos em Londres.
Lisboa era uma cidade curiosa. Dos bairros antigos que sobreviveram ao terramoto, felizmente anda ficou alguma lembrança, Mouraria, Alfama, Bairro Alto, etc. A ampla visão do Marquês reconstruiu o que já não existia em moldes modernos e lineares que ainda hoje persistem, com um ou outro atentado patrimonial. Mas Lisboa tinha uma característica, a meu ver ímpar. Era a distribuição concêntrica a partir do Terreiro do Paço das diferentes épocas. O séc. XVIII no Terreiro do Paço e arredores, o séc. XIX a partir do antigo Passeio Público (Restauradores e Avenida da Liberdade), O sec. XX nas Av. Novas, etc. Hoje a tendência é destruir o existente considerado sem valor, excepto a obra do Marquês, por enquanto considerada única e intocável.
Aqui em S. Miguel também esta atitude tem sido desde sempre tomada por diferentes personagens de diferentes origens sociais e culturais. Ambição política? Falta de senso? Ausência de gosto e educação estética? Interesses imobiliários? Talvez um pouco de tudo.
Destruiu-se o Convento de S. João para ser aproveitado para quartel no séc. XIX e o que restou que ainda era muito, foi demolido no séc. XX para se fazer um Teatro e agora um Centro Cultural.
Destruiu-se o Aterro, a Varanda de Pilatos e o pitoresco Cais da Alfandega para se construir uma insípida Avenida Marginal e um pastiche do Terreiro do Paço.
Destruíram-se as pitorescas lojas no andar térreo do lado sul do adro da Igreja da Matriz.
Destruiu-se o Convento dos Franciscanos do séc. XVIII, para se fazer uma frontaria neoclássica para a nova Misericórdia. A antiga foi pura e simplesmente demolida, para dar lugar ao bonito edifício da Casa Bensaúde, mas a memória da velha Misericórdia pura e simplesmente desapareceu. Custa a acreditar que o antigo edifício da velha e rica Santa Casa, fosse um simples pardieiro indigno de ser recuperado!
Destruiu-se e profanou-se a Igreja e o Convento dos Gracianos para fazer um liceu, depois um tribunal e depois uma Academia das Artes, com estruturas de betão de gosto duvidoso e a meu ver inapropriadas para o espaço onde se insere e a que se destinava, pouco restando do bonito edifício que primitivamente foi. Do claustro fez-se um auditório que pouca ou nenhuma utilidade tem. Da cerca fizeram no séc. XIX o único mercado rústico que Ponta Delgada tinha e que há poucos anos foi “vandalizado” por um “artista” iluminado, com o consentimento dum Presidente da Câmara sonâmbulo.
O bonito jardim do Palácio do Marquês da Praia foi destruído para nele se instalar o inestético edifício do Tribunal. Se tivesse sido um privado a querer construir um bonito prédio de rendimento seria com certeza chumbado por atentar contra o património
A velha ermida da Rua da Misericórdia foi arrasada para se fazer um armazém e agora, julgo eu, uma garagem, para uma importante empresa comercial local.
A ermida da Trindade foi trasladada e escondida na Lombinha dos Cães, para em seu lugar se construir um duvidosíssimo edifico de escritórios.
Destruiu-se também um bonito solar do séc. XVIII em plena Avenida Marginal para se fazer um moderno Hotel. Este, lembro-me eu bem, seria facilmente recuperável, não fossem os interesses imobiliários em jogo.
Permitiu-se a destruição do Paço dos Condes da Ribeira Grande no séc. XIX que seguramente seria digno de ser preservado, para construir o bonito palácio do Barão de Fonte Bela, hoje também ele arruinado pela sua transformação em Liceu. Não estaria este muito melhor apetrechado para ser palácio do então Governo Civil do que o desinteressante Palácio da Conceição, também ele resultante da destruição do Recolhimento da Conceição, anexo à igreja felizmente ainda hoje conservada. Até que algum político “desinteressadamente” a venda para lá instalar um restaurante, um bar ou uma discoteca? Hoje o Palácio Fonte Bela ainda ali poderia estar em toda a sua plenitude.
Todas as grandes casas de difícil e cara manutenção, dificilmente se conservam para as futuras gerações se não tiverem espaço em seu redor que permita a sua adaptação a hotéis de charme com jardins envolventes e a existência de actividades de lazer como ténis, croquet, piscinas, picadeiros, etc. Foi o contrário precisamente que fizeram os nossos preclaros urbanistas com a antiga casa dos Condes do Botelho, no Livramento. Fizeram passar a via rápida o mais perto possível das janelas daquela bonita casa cortando todo o espaço envolvente de tal modo que no futuro a casa estará destinada à destruição pela impossibilidade de com dignidade a manter.
É o que irá seguramente acontecer ao Solar das Necessidades, porventura a mais bonito exemplar de arquitectura civil do séc. XVIII nos Açores, pelos enormes entraves que são impostos para a sua transformação em hotel, ainda que seja essa a única alternativa à sua destruição.
Se um cidadão quiser fazer uma retrete em casa, tem de esperar meses por uma autorização da Câmara, supostamente para o obrigar a cumprir a lei. Contudo o que se assiste é que os maiores vandalismos são impunemente cometidos desde sempre pelas próprias Câmara e Governos, à margem das leis, do bom senso e do bom gosto, quando não por cedências, seguramente não inocentes, aos lobbies da construção civil e ao poder económico. O que não quererá dizer que se aceite sem reparo todos estes atentados.


Carlos F. Afonso
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