domingo, agosto 01, 2004

O ALTAR DO SENHOR CRUCIFICADO OU DO SENHOR SANTO CRISTO PEQUENINO

Ao entrar no coro alto do Convento de Nossa Senhora da Esperança uma suave emoção nos toma os sentidos perante o ambiente monástico daquele imenso espaço, criando-nos a ilusão de se voltar a um passado longínquo onde só a imaginação nos pode levar. Um místico silêncio, próprio de lugar sagrado, parece embalsamar o tempo. Era ali que as religiosas iam, tal como hoje, fazer as suas preces e cumprir seu dever nas horas canónicas. A vastidão da quadra parece pequena para conter tão rico património. Em redor telas emolduradas, retábulos de tábuas pintadas com figuras de santos a quem outrora tributavam fervorosa devoção, oratórios com seus baldaquinos sobre singelas cartelas de artística imaginação, altares para celebração dos Mistérios Divinos e uma capela com altar, profusamente decorada com ricas talhas de madeiras exóticas e com as paredes revestidas de decorações setecentistas a que o tempo esmaeceu a vivacidade das cores, valorizando a autenticidade do trabalho artesanal.
Este coro é um precioso conjunto, tão heterogéneo nos estilos como genuinamente nosso na criatividade da beleza. Pensamos ser único nos Açores e talvez em Portugal, pois ainda mantém a traça primitiva, tendo escapado ao camartelo destruidor das paixões humanas e à acção demolidora do tempo.
Neste ambiente enternecedor ressalta-nos um altar e retábulo conhecido por Senhor Crucificado, que posteriormente passou a ter a ingénua invocação de Senhor Santo Cristo Pequenino. É o único altar com retábulo na face norte deste Coro. A mesa é estreita e pequena e as ornamentações do frontal parecem imitar sebastos e rendas feitos em madeira entalhada com um medalhão oval ao centro, ladeado por duas pombas, onde se lê: MEU AMOR É JESUS CRUCIFICADO. Por detrás da mesa do altar eleva-se o retábulo com características barrocas, enriquecido com profusão de volutas, concheados e outros adornos curvilíneos, cujo sentido de beleza está expresso em cada forma. É delimitado por duas pilastras arrematadas por capitéis em que assenta uni arco de volta inteira, tendo no fecho um medalhão sustido por anjos, sobrepujado por uma coroa com a sigla de Jesus em grego. No centro deste retábulo sobressai um oratório, com três faces de vidros muito imperfeitos, apoiado numa mísula de ricos motivos vegetalistas. Lateralmente, este oratório tem duas colunas de baixo relevo e com as bases decoradas com pombas, símbolo eucarístico de pureza. O retábulo é coroado por um baldaquino de madeira ricamente entalhada, tendo ao centro um artístico lampadário de prata. O fundo deste oratório simula um pavilhão real povoado por anjos alados entremeados de conchas. Tudo neste altar gravita à volta de um riquíssimo crucifixo onde o Cristo de primorosa escultura de madeira, tendo a cabeça descaída sobre a direita. A coroa de espinhos tem uma pérola em cada extremidade. No peito um relicário contém três minúsculas partículas cuja proveniência se desconhece. As mãos e os pés sobrepostos estão presos por pregos encabeçados por ametistas. O corpo do Senhor é destacado por um resplendor de prata dourada de formato ovóide, em que as pontas dos raios se entrecruzam formando uma grinalda cravejada de pedras preciosas, tais como topázios, esmeraldas, ametistas, diamantes, crisólitas e outras. No resplendor da cabeça o desconhecido artista evidenciou todo o primor da sua arte de joalharia, valorizando-o com um grande rubi ao centro e com outros mais pequenos ao longo dos raios, interpolados com diamantes. A cruz, bem como a peanha são de pau santo. O topo da cruz é encimado por uma delicada peça de filigrana dourada, cravejada de rubis, obedecendo ao mesmo formulário decorativo. Um pendão enfunado, gravado com as iniciais J N R J, está fixado na haste da qual pendem, nas extremidades, dois pingentes formados por um conjunto de pérolas empilhadas. Os braços da cruz estão muito enriquecidos, pois tem nas extremidades rosáceas de filigrana com três ordens de pétalas e um grande rubi ao centro tendo perto umas pirâmides formadas por sete linhas de pérolas sobrepostas. A extremidade inferior da cruz é decorada com um laço de filigrana de ouro, com um rubi seguido de outro laço, também de filigrana, cravejado de pérolas. O rubi central está envolvido por uma cercadura de rubis quadrangulares; um anel com três diamantes; uma pirâmide de pérolas igual à anteriores; um pingente de ouro com um topázio central e sete rubis em forma geométrica, terminando numa jóia redonda centrada por uni rubi quadrangular envolto em pérolas gradas. Pensa-se que os anéis e a jóia foram ofertas votivas.
A peanha é facetada em cinco planos, revestidos de chapas de prata recortada e vazada coro bonitos desenhos, sendo o da face principal decorado com sete diamantes em simetria. Sobre a peanha está uma peça de prata sugerindo o Monte Calvário, muito trabalhada e com motivos vegetais
Este altar foi instituído pela Madre Antónia da Madre de Deus, segundo se depreende de unia passagem do seu termo de óbito.
Na devota missão de cuidar deste altar seguiram-se outras religiosas de quem hoje se desconhecem os nomes todavia a última freira professa que o teve à sua conta foi a Madre Margarida Laura do Patrocínio. Esta Madre entrou para este Convento, na companhia de sua irmã Isabel Ludovina da Côrte Celeste, em 9 de Novembro de 1829. Fizeram escritura de dote de património de 848$000 reis em 13 de Novembro e professaram em 19 desse mesmo mês do ano de 1830. Tiveram mais duas irmãs neste Convento, que foram as Madres Ana Isabel Teodora e Teresa Emília do Carmo ou da Anunciada. Eram filhas do morgado Manuel José da Câmara Coutinho e de D. Bernarda Miquelina do Canto Corte Real, da ilha de Santa Maria. Este casal teve mais filhos, entre os quais o morgado Laureano Francisco da Câmara Falcão, que veio para S. Miguel onde casou duas vezes, deixando descendência de ambos os matrimónios.
A vida conventual da Madre Margarida Laura do Patrocínio foi cheia de ocupações, pois desempenhou quase todos os cargos que se exerciam neste Convento. Assim, foi Vigária do Coro nos anos de (1833, 1851. 1862 a 1865 e 1882), Enfermeira (1834 e 1844), Porteira da Porta Regral (1838,1 840, 1 845, 1 853, 1 868 a 1 873, 1876 e 1879), Porteira do Portão do Carro (1841, 1843, 1845, 1847 a 1850, 1852, 1853, 1867, 1868, 1870 a 1872, 1873 e 1876), Escuta dos Mirantes (1852), Discreta (1867 a 1873, 1876 e 1880), Abadessa de 12 de Maio de 1865 até ao dia 6 de Maio de 1867, dia em que foi nomeada a sua sucessora no cargo; Escuta dos Médicos e Sacristã nas eleições do ano de 1880. Os achaques do fim da vida obrigaram-na a sair da clausura no outono do ano de 1882 e logo que se achou melhor regressou a este Convento, onde veio a falecer pelo meio dia de 9 de Junho de 1887.
O jornal "Gazeta da Relação” na sua edição n.0 186, referente ao dia l.º de Maio de 1869, insere uma notícia de que se destacam dois parágrafos:
“N’este anno são tres os dias consecutivos de festa nas religiosas da Esperança. Hoje a sahida do Senhor, amanhã, domingo, a solemníssima procissão e festa, e na segunda-feira a festa também solemne e magestosa da Santa Cruz com a invocação do Sancto Christo pequenino, que se celebra a expensas e por devoção da ex.ma sr. D. Margarida Laura da Câmara Falcão.
A imagem do Senhor Santo Christo pequenino é um precioso crucifixo, que todo o anno recebe o devido culto em capella particular do convento, e que todos os annos no dia 3 de maio se expõe à veneração dos fieis.”
A feliz circunstância de este altar ter sempre zeladoras muito devotas originou um culto muito fervoroso e como provinham de famílias abastadas, enriqueceram-no com custosas jóias.
Um pormenor curioso é o facto de ter estado quase sempre entregue ao cuidado de religiosas naturais da ilha de Santa Maria, ou a esta ligadas por laços de parentesco.
(Hugo Moreira, Artigo publicado no jornal “Correio dos Açores”. n.º 21.420. de l6 de Maio de 1993)

São textos como estes que deviam ser fazer parte de um Guia sobre as ilhas.


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