sábado, maio 29, 2004

O bondoso Januário

Depois de ler o excelente conto do JVC, postado no Professorices, lembrei-me dum negro que conheci na minha infância. Embora não possa recorrer à excelente prosa do meu ilustre amigo, gostaria de partilhar esta “estória”, infelizmente não ficcionada, dado que para isso não tenho nem engenho, nem arte.
Na minha meninice passávamos o Verão no Pópulo, em casa do meu Avô. Nesse tempo o Pópulo era um pequeno aglomerado de uma dúzia casas de veraneio e de três ou quatro residentes permanentes.
Na casa ao lado da nossa, vivia uma numerosa e simpática família. O Avô, um velho major das campanhas de Africa do séc. XIX, trouxera de lá, em circunstâncias que desconheço, um pequeno negro que, a troco de pão e uma enxerga, toda vida trabalhou para aquela família. Conheci-o velho, muito velho, com mais de oitenta anos, com a carapinha e uma mal semeada barba totalmente brancas, andando com imensa dificuldade, com um terno olhar baço e um sorriso triste. Vivia num anexo da casa, num quarto de chão térreo, ladeando o grande pátio onde, despreocupadamente, brincávamos. O Januário assistia às nossas brincadeiras silencioso, sentado num pequeno banco de madeira colocado à porta do seu quarto. Assistia, mas estou certo que não as via. O seu olhar triste e baço estava noutro lugar. Talvez na sua querida e distante África que tão cedo abandonara.
Num dos verões, em 1951 ou 52, vieram ao Pópulo passar férias, de Moçambique, umas primas nossas. Teríamos todos entre 6 e 10 anos de idade. Eram elas umas lindíssimas crianças, de aspecto nórdico, com cabelos loiríssimos e olhos claros. Num dia em que fomos todos brincar para a casa dos nossos vizinhos, mal entraram viram o Januário sentado no seu banco, atiraram-se a ele, aos abraços e beijos, pela saudade que já sentiam da “sua” África longínqua. Atarantado, o bom Januário correspondia às carícias das nossas primas, chorando convulsivamente. Não percebemos porquê e, sempre que elas lá iam, a cena repetia-se. Só mais tarde soubemos a razão da comoção do bondoso Januário. Nunca, durante a sua longa vida, alguém o abraçara, acariciara ou beijara!
Morreu o Januário, ainda éramos crianças, tão obscuramente como vivera, na obscuridade do seu imundo quarto. Ao menos levou consigo, como única alegria da sua vida, as carícias e os beijos das nossas encantadoras primas!


(Carlos F. Afonso)
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