Ponta Delgada – Vandalismo Cultural ou Desenvolvimento? -II
Ponta Delgada sendo uma cidade, sob o ponto de vista urbanístico e pelos padrões estéticos actuais, não tão bonita como outras suas congéneres, tinha uma “personalidade”, a meu ver curiosíssima para uma cidade situada à beira mar, que foi o ter-se desenvolvido, durante 400 anos, de costas voltadas para o mar, pelos condicionalismos geográficos e climáticos da zona onde se situa.
Já Gaspar Frutuoso a descreveu assim no séc. XVI: “Esta cidade da Ponta Delgada é assim chamada por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como outras da ilha, quase rasa com o mar, que depois, por se edificar mais perto dela uma ermida de Santa Clara, se chamou ponta de Santa Clara; antre a qual ponta e a da Galé se faz uma grande enseada, já dita, de compridão de três léguas”. (1)
Esta grande enseada, aberta face ao imprevisível mar açoriano, sem um porto natural que a protegesse, levou a que a cidade lhe voltasse as costas para se proteger de ventos e marés, o que afinal traduz também o caráter introvertido do micaelense já apontado por Nemésio.
A colonização de S.Miguel começou pela zona fronteira à ilha de Santa Maria, a Povoação Velha, hoje só conhecida por Vila da Povoação situada na zona nascente da ilha. Conta-nos o padre António Cordeiro uma curiosa lenda (2). Chegados os primeiros colonos ao lugar, pressentiram que não estavam sós. Alguém os observava. Procuraram e encontraram uma jovem que lhes contou que por amores contrariados na vizinha ilha de Santa Maria, decidira fugir para S.Miguel com o namorado. Combinaram com um barqueiro o transporte e cá chegados, o barqueiro matou o noivo para ficar com infeliz rapariga que desde então vivia fugindo ao seu perseguidor. Após aturadas buscas conseguiram capturar o fugitivo e, logo ali entre as improvisadas barracas de madeira e colmo, fizeram justiça, matando-o. Ainda hoje em S.Miguel se usa o termo ”justiça da Povoação”, para se referir a justiça popular.
A capital de S.Miguel estabeleceu-se mais a poente, em Vila Franca do Campo – “franca” por ser isenta de tributos, excepto os dízimos ao Rei, e “do Campo” por se situar num campo raso (3) – pela riqueza da sua agricultura e pela protecção que lhe oferecia o pequeno Ilhéu fronteiro e cuja pequena baía funcionava como apertado porto natural. Tendo sido a capital durante escassos 50 anos, os vilafranquenses ainda hoje a ela se referem como a “Vila”, sem lhe acrescentar o nome, com o orgulho que ainda mantêm, desde há 550 anos, de quando era ela a única vila da ilha.
O antigo lugar de Ponta Delgada, é descrito por Frutuoso como: “ começando sua compridão na casa dos herdeiros do magnífico Baltasar Rebelo, da parte do oriente, e acaba em casa do esforçado e forçoso que foi Baltasar Roiz, de Santa Clara, ou ainda além, da banda do ponente e, posto que no princípio e fim tenha só uma rua, pelo meio tem três, quatro, cinco e seis, atravessadas de norte a sul, em sua largura, com mais de dezasseis notáveis ruas, afora muitas azinhagas e becos e outras ruas menos principais e cursadas”. (4)
Antes que terminasse o século XVI, Ponta Delgada aparece-nos já estendida de leste para oeste ao correr do mar, em estreita faixa, sensivelmente meia légua depois da freguesia de Rosto de Cão (S. Roque), seu termo daquele lado, e a légua e meia da Vila da Lagoa, no sopé da dita Serra de Água de Pau, até um pouco além do Campo de S. Francisco onde, por altura do começo do actual molhe se situa a ponta de Santa Clara, entrando baixa pelo mar fora. (5)
A malha urbanística da cidade com uma estrutura medievalizante/tradicional, tinha uma forma nitidamente fusiforme, castrense e medieval, transposta para o contexto insular e litoral começando numa só rua alargando-se em várias ruas, travessas e becos, de malha estreita e irregular terminando de novo numa rua de saída, paralelamente à costa. (6)
Angra, com uma estrutura e malha urbana mais elaborada, é uma típica cidade Litoral/portuária pela magnífica baía que desde sempre lhe serviu de porto natural, projectando-a rapidamente para ser a primeira cidade açoriana, pelo sua incontestável importância no apoio das naus da carreira das Índias. Que me desculpem os angrenses que sempre foram ferozes opositores dos espanhóis, mas a estrutura da sua cidade lembra-me mais as cidades espanholas, quer pelo belíssimo forte filipino quer pela sua estrutura mais regular centrada na sua regular Praça Velha, tal como as “Plaza Mayor” espanholas. Mas não terá sido só esta influência que, ainda que contrariados, terão recebido. O seu carácter festivaleiro e folgazão, o gosto pelas touradas e a própria pronúncia, são heranças que não podem negar. “Dos espanhóis é clara a origem da palatalização do 1 na Terceira: família (1 junto de i semi-vogal), i. é, ouvindo-se familhia”. (7) Uma expressão muito típica da Terceira, a troca de “tão” por “tanto” (uma cidade tanto linda), poderá também ser resultado dessa influência castelhana.
Planta de Ponta Delgada em 1831 desenhada por António Ferreira Garcia d’Andrade.
A vermelho o eixo sul da cidade, a verde a sua espinha dorsal constituindo o seu eixo mediano e a amarelo o eixo norte.
São estes eixos que iremos seguir nos nossos passeios
(1)Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, Vol. 4º , Cap.XLIII, pág. 73
(2)António Cordeiro, “História Insulana das Ilhas a Portugal sujeytas” Lisboa 1717.
(3)Francisco Afonso de Chaves e Melo, A Margarita Animada, 2.ª Edição 1994 ICPD pág. 56 (1ª ed. Lisboa-1723)
(4)Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, Vol. 4º , Cap.XLIII, pág. 73
(5)Nestor de Sousa, A ARQUITECTURA RELIGIOSA DE PONTA DELGADA NOS SÉCULOS XVI A XVIII, Universidade dos Açores Ponta Delgada 1986.
(6)José Manuel Fernandes, Arquitectura e urbanismo nas ilhas atlânticas. um património comum dos Açores, Cabo Verde, Canárias e Madeira, IV Colóquio Internacional de História das Ilhas, Canárias 1995
(7) António Machado Pires, in “O HOMEM AÇORIANO E A AÇORIANIDADE”, IV Colóquio Internacional de História das Ilhas, Canárias 1995
Carlos F. Afonso
Já Gaspar Frutuoso a descreveu assim no séc. XVI: “Esta cidade da Ponta Delgada é assim chamada por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como outras da ilha, quase rasa com o mar, que depois, por se edificar mais perto dela uma ermida de Santa Clara, se chamou ponta de Santa Clara; antre a qual ponta e a da Galé se faz uma grande enseada, já dita, de compridão de três léguas”. (1)
Esta grande enseada, aberta face ao imprevisível mar açoriano, sem um porto natural que a protegesse, levou a que a cidade lhe voltasse as costas para se proteger de ventos e marés, o que afinal traduz também o caráter introvertido do micaelense já apontado por Nemésio.
A colonização de S.Miguel começou pela zona fronteira à ilha de Santa Maria, a Povoação Velha, hoje só conhecida por Vila da Povoação situada na zona nascente da ilha. Conta-nos o padre António Cordeiro uma curiosa lenda (2). Chegados os primeiros colonos ao lugar, pressentiram que não estavam sós. Alguém os observava. Procuraram e encontraram uma jovem que lhes contou que por amores contrariados na vizinha ilha de Santa Maria, decidira fugir para S.Miguel com o namorado. Combinaram com um barqueiro o transporte e cá chegados, o barqueiro matou o noivo para ficar com infeliz rapariga que desde então vivia fugindo ao seu perseguidor. Após aturadas buscas conseguiram capturar o fugitivo e, logo ali entre as improvisadas barracas de madeira e colmo, fizeram justiça, matando-o. Ainda hoje em S.Miguel se usa o termo ”justiça da Povoação”, para se referir a justiça popular.
A capital de S.Miguel estabeleceu-se mais a poente, em Vila Franca do Campo – “franca” por ser isenta de tributos, excepto os dízimos ao Rei, e “do Campo” por se situar num campo raso (3) – pela riqueza da sua agricultura e pela protecção que lhe oferecia o pequeno Ilhéu fronteiro e cuja pequena baía funcionava como apertado porto natural. Tendo sido a capital durante escassos 50 anos, os vilafranquenses ainda hoje a ela se referem como a “Vila”, sem lhe acrescentar o nome, com o orgulho que ainda mantêm, desde há 550 anos, de quando era ela a única vila da ilha.
O antigo lugar de Ponta Delgada, é descrito por Frutuoso como: “ começando sua compridão na casa dos herdeiros do magnífico Baltasar Rebelo, da parte do oriente, e acaba em casa do esforçado e forçoso que foi Baltasar Roiz, de Santa Clara, ou ainda além, da banda do ponente e, posto que no princípio e fim tenha só uma rua, pelo meio tem três, quatro, cinco e seis, atravessadas de norte a sul, em sua largura, com mais de dezasseis notáveis ruas, afora muitas azinhagas e becos e outras ruas menos principais e cursadas”. (4)
Antes que terminasse o século XVI, Ponta Delgada aparece-nos já estendida de leste para oeste ao correr do mar, em estreita faixa, sensivelmente meia légua depois da freguesia de Rosto de Cão (S. Roque), seu termo daquele lado, e a légua e meia da Vila da Lagoa, no sopé da dita Serra de Água de Pau, até um pouco além do Campo de S. Francisco onde, por altura do começo do actual molhe se situa a ponta de Santa Clara, entrando baixa pelo mar fora. (5)
A malha urbanística da cidade com uma estrutura medievalizante/tradicional, tinha uma forma nitidamente fusiforme, castrense e medieval, transposta para o contexto insular e litoral começando numa só rua alargando-se em várias ruas, travessas e becos, de malha estreita e irregular terminando de novo numa rua de saída, paralelamente à costa. (6)
Angra, com uma estrutura e malha urbana mais elaborada, é uma típica cidade Litoral/portuária pela magnífica baía que desde sempre lhe serviu de porto natural, projectando-a rapidamente para ser a primeira cidade açoriana, pelo sua incontestável importância no apoio das naus da carreira das Índias. Que me desculpem os angrenses que sempre foram ferozes opositores dos espanhóis, mas a estrutura da sua cidade lembra-me mais as cidades espanholas, quer pelo belíssimo forte filipino quer pela sua estrutura mais regular centrada na sua regular Praça Velha, tal como as “Plaza Mayor” espanholas. Mas não terá sido só esta influência que, ainda que contrariados, terão recebido. O seu carácter festivaleiro e folgazão, o gosto pelas touradas e a própria pronúncia, são heranças que não podem negar. “Dos espanhóis é clara a origem da palatalização do 1 na Terceira: família (1 junto de i semi-vogal), i. é, ouvindo-se familhia”. (7) Uma expressão muito típica da Terceira, a troca de “tão” por “tanto” (uma cidade tanto linda), poderá também ser resultado dessa influência castelhana.
Planta de Ponta Delgada em 1831 desenhada por António Ferreira Garcia d’Andrade.
A vermelho o eixo sul da cidade, a verde a sua espinha dorsal constituindo o seu eixo mediano e a amarelo o eixo norte.
São estes eixos que iremos seguir nos nossos passeios
(1)Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, Vol. 4º , Cap.XLIII, pág. 73
(2)António Cordeiro, “História Insulana das Ilhas a Portugal sujeytas” Lisboa 1717.
(3)Francisco Afonso de Chaves e Melo, A Margarita Animada, 2.ª Edição 1994 ICPD pág. 56 (1ª ed. Lisboa-1723)
(4)Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, Vol. 4º , Cap.XLIII, pág. 73
(5)Nestor de Sousa, A ARQUITECTURA RELIGIOSA DE PONTA DELGADA NOS SÉCULOS XVI A XVIII, Universidade dos Açores Ponta Delgada 1986.
(6)José Manuel Fernandes, Arquitectura e urbanismo nas ilhas atlânticas. um património comum dos Açores, Cabo Verde, Canárias e Madeira, IV Colóquio Internacional de História das Ilhas, Canárias 1995
(7) António Machado Pires, in “O HOMEM AÇORIANO E A AÇORIANIDADE”, IV Colóquio Internacional de História das Ilhas, Canárias 1995
Carlos F. Afonso
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